O galeto, divino. Depois disso, o movimento dela era leve de servir café, soltando palavras ao vento, avisando:
– Ah, chegou o álbum de casamento, quer ver? Pausa.
– Lógico, respondi, meio gaguejando porque, afinal de contas, fotografia é coisa séria. De casamento então, um sagrado rito. Mas vamos lá, devaneios só serão permitidos no final do texto.
O que era para ser meu espreguiçar paraguaio de pós almoço, num feriado chuvoso qualquer, transformou o dia, a semana, o mês e a vida inteira num quase tratado filosófico sobre as vidas que não vivi. Foi um dar-me conta, um cair de ficha. Coisinha despretensiosa nada, o que senti era meu próprio buraco no filme da Alice no país das maravilhas. Entrei, mergulhei.
Página a página, sorrisos, ângulos, preto e branco, cores, fosco. Tudo arrumado e como deve ser para “guardar a alma”, como diziam os antigos. Tinha madrinha maquiada, criança olhando para o céu, noivos nervosos, pais orgulhosos. Na linha do tempo dessa vida real, aquele álbum me dizia: aqui deu tudo certo, e aí? Menina de família nasce, cresce, reproduz e tem fotos, muitas fotos, inclusive de casamento.
Aqui sim, em mim, uma epifania. Não tenho nenhum álbum. De quinze anos ou de formatura, nem belas imagens de barriga redonda desenhando a sombra do bebê que ainda não nasceu, nem vai nascer. Noiva? Nem nas brincadeiras tive um vestido branco para chamar de meu. Sem madrinhas ou bem-casados. Nunca ouvi “love in the air” na hora do filé a piemontês, nem ajudei meu tio que bebeu demais, nada disso.
Onde é que eu estava quando essas coisas aconteceram comigo? Não tenho a mínima ideia. Seria necessário refazer o percurso, voltar para o início ou andar cinco casas? Será que a vida são fotos e não o filme inteiro? Será que retrato vem de re-tratar que diz para tratar de novo? E quando o galeto for na minha casa vou mostrar o quê na hora do café?
Mês que vem farei cinquenta e um. Quem sabe fazer da festa, uma exposição fotográfica. Imagens fotoshopadas, barriga de grávida, cara de debutante, felicidade de beca. A vida toda fotografada e exposta de uma só vez para prestar contas sabe-se lá para quem. Certas liberdades deveriam ser proibidas quando valem uma vida para revista. Uma exposição, resumo acelerado para chegar até aqui, nesse momento de devaneios. Porque agora posso.